Gustavo Porpino*
O desperdício de alimentos é um problema global quase invisível aos nossos olhos. Ainda sabemos pouco sobre os montantes de comida descartados pelo Brasil, um dos mais pujantes produtores e exportadores de alimentos do mundo. Mitigar o desperdício no nosso País é uma agenda estratégica para ampliarmos a oferta de alimentos saudáveis e avançarmos na redução dos impactos das mudanças climáticas. Aproximadamente 4,1 bilhões de reais, apenas em frutas e hortaliças, foram descartados pelas principais redes varejistas nacionais em 2023, conforme pesquisa da Associação Brasileira de Supermercados.
Parte do desperdício do varejo deriva de ineficiências nas etapas anteriores da cadeia produtiva. O problema das perdas de alimentos começa antes mesmo do plantio. Se o produtor rural não tiver capacidade de planejar bem o quê e quando cultivar, a viabilidade da safra pode ser comprometida por fatores climáticos ou de mercado. Para além da necessidade de prever a demanda e os anseios dos consumidores, é preciso ter acesso a sementes e mudas de qualidade. À medida que o alimento se aproxima das nossas casas, os desafios são vencer longas distâncias rodoviárias, uso de embalagens inadequadas para transporte, cadeias de frio deficientes e manuseio e organização de estoque inadequados. Para encerrar seu ciclo, a comida ainda bate de frente com o comportamento do consumidor, que não é único, mas que por razões diversas termina descartando muitos alimentos nutritivos.
O IBGE e a Embrapa são frequentemente citados como fontes para a informação de que “o Brasil está entre os dez maiores desperdiçadores de alimentos do mundo”. Pode ser verdade, mas dados primários para dar suporte à afirmação não existem. Estamos entre os países que nunca reportaram dados oficiais para a plataforma da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sobre perdas de alimentos, o chamado Índice Global de Perdas. Estimar as perdas pós-colheita do Brasil com base na plataforma da FAO não faz sentido. Esta carência de evidências científicas abarca os elos da cadeia produtiva desde o campo até antes do varejo de alimentos. Faltam dados de abrangência nacional para delinearmos planos de ação mais eficazes, mas diversas causas das perdas já foram mapeadas em estudos da Embrapa, Conab, Esalq-USP e outros.
Estimativa com base no único levantamento de abrangência nacional sobre desperdício familiar, realizado pela Embrapa e FGV em 2018, calcula em 9 milhões de toneladas o descarte anual de comida por famílias brasileiras. O volume é suficiente para encher 750 mil caminhões compactadores de lixo com capacidade de 19 m³ . Se enfileirados, estes caminhões dariam uma distância de 4.945 km, superior aos 4.175 km do Oiapoque ao Chuí. E por que estes números não saltam aos nossos olhos? Não temos o hábito de prestar atenção à nossa geração de resíduos e o que se joga fora no elo final da cadeia produtiva de alimentos parece não importar aos demais atores do sistema alimentar. Seguimos uma lógica produtivista e linear ao passo que a emergência climática demanda fortalecermos a circularidade dos alimentos.
Dados da Agência de Proteção Ambiental dos EUA estimam que 58% das emissões fugitivas de metano provenientes de aterros sanitários derivam de alimentos descartados nas cidades. Os dados do Sistema de Alerta e Resposta ao Metano, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), apontam que as emissões globais de metano devem ser reduzidas em 40% a 45% até 2030 para alcançar caminhos econômicos que limitem o aquecimento global a 1,5°C.
Para alcançarmos esta meta, os Planos Climáticos Nacionais, orientados a impulsionar a ambição climática, a qualidade do ar e a segurança alimentar e nutricional, devem estar atentos aos impactos ambientais do desperdício de alimentos. Precisamos, verdadeiramente, substituir a lógica de economia linear por sistemas alimentares circulares. A transformação demanda visão sistêmica no sentido de delinearmos soluções do campo à mesa e avaliarmos as interações entre produtores, centrais de abastecimento, varejo, indústria e consumidor. Um caminho viável para acelerarmos a mudança almejada é por meio dos governos locais. Sistemas alimentares urbanos sustentáveis são viáveis para incrementar a produção de alimentos in natura próxima das cidades, fortalecer a agricultura urbana por meio de hortas comunitárias e escolares, criar espaços inovadores de comercialização de alimentos com enfoque na biodiversidade e cultura locais, e principalmente, compreender que comida é assunto de todos e requer políticas permanentes com participação social e de áreas diversas já consolidadas nos organogramas das gestões municipais, tais como saúde, educação, assistência social, turismo e economia.
Ampliar a economia circular dos alimentos gera renda na cidade, reduz impactos ambientais e impulsiona os esforços de combate à fome. Há ainda muitas oportunidades de empreendedorismo de impacto social a serem exploradas nesta agenda. Já temos dezenas de startups genuinamente brasileiras provendo soluções inovadoras para combater o desperdício de alimentos, assim como cidades e instituições com iniciativas replicáveis de gastronomia social, fomento à redistribuição de alimentos ou à compostagem.
Podemos avançar mais rapidamente na redução do desperdício de comida e o otimismo não é sem justificativa. O engajamento dos ministérios do Desenvolvimento Social e do Meio Ambiente com o tema está avançando, assim como o interesse do PNUMA, FAO, Instituto Thunen e outros organismos internacionais em colaborar com o Brasil nesta agenda. Temos ainda iniciativas robustas e com governança bem delineada, tais como o Pacto Contra a Fome, e o Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares (Luppa), ação em rede do Instituto Comida do Amanhã. A força da sociedade civil, com voz em conselhos e sedenta por resultados práticos, também impulsiona iniciativas diversas. A faca e o queijo estão na mesa para não deixarmos sobrar mais nada neste Brasil grandioso, diverso e de rica cultura alimentar.
*Atua na equipe de PD&I da Embrapa Alimentos e Territórios (Maceió-AL). É doutor em
administração pela FGV-EAESP, colaborador do PNUMA e cofundador do Pacto Contra a Fome.